quarta-feira, 16 de junho de 2010

Âmago


Lá estava a Morte, com sua típica capa preta e sua foice em punho. Mas ao contrário do que se imagina, o seu rosto não é aterrorizante e nem demoníaco. Talvez a sua falta de expressão e ânimo seja ainda mais frustrante e medonha. E seria redundância dizer, mas os olhos da Morte são ausentes e sem vida. E isso é o que mais amedronta as pessoas. Não é de figuras espectrais que elas têm medo, mas sim do nada. Um animal de chifres ardendo em fogo e salivando por arrancar-lhes a alma seria menos pavoroso para os humanos do que a Morte e o seu nada. Eles tanto têm medo, que criaram demônios para si, paradigmas e leis. Criaram um céu e um inferno. E o que chamam de medo é na verdade o seu porto seguro. Bem, na verdade, não é exatamente do vazio que provém seu medo.



E lá estava a Morte, Julia e o vazio. Os olhos de Julia amedrontados, e o pavor rasgando-lhe o peito. E a Morte e sua ausência de tudo. O trabalho deveria ser feito.

-Então, do que você tem medo? – a sua voz era monótona, sem tom, num timbre mecânico e ecoou, como se houvessem paredes em algum lugar, em um fim impossível de enxergar, em meio à falta de cor, de oxigênio e de vida.

Julia ficou apalermada, olhou em volta, procurando algum ponto seguro. Qualquer cor que lhe desse uma direção para fugir. Olhou pra cima e para baixo. Ó, Meu Deus, não tem fim esse lugar! E os seus pensamentos pareceram inapropriados até para si mesma, no momento em que pronunciou a palavra Deus. Naquele vácuo eterno era difícil de acreditar em todas as crenças que carregara desde criança.

-Tenho medo disso tudo! De não ter referência, de não ter um ponto! – Julia esbravejava e não conseguia ouvir o som da própria voz.

- E porque você tem medo?

E Julia vacilou. O eco daquelas palavras sem vida era desconcertante e ela achou que tremeria e tombaria. Então se deu conta que não podia sentir o próprio corpo, que não podia se movimentar e desconfiava que mesmo que conseguisse, não seria capaz de ir a lugar algum. As palavras ainda ecoavam. Por quê? Por quê? E ela não achava a resposta. Só sabia que o medo estava lá e não sairia de lá. Mas ela não entendia o motivo de tudo aquilo.

-Você não sabe responder por que está procurando no lugar errado.

Julia não sabia o que aquilo queria dizer e não estava interessada em saber. Ela só queria fugir dali. Se pudesse correr, correria como um leopardo.

-Você quer fugir como fez a vida inteira.

Foi a voz e o impacto que as palavras causaram que fez Julia esbravejar da maneira que esbravejou. Sentiu que até poderia reunir forçar suficientes pra pular em cima da Morte e matá-la com a própria foice, se é que seria possível matar a Morte.

-Fugir? FUGIR? Nunca fugi dos meus medos, nunca desisti de nenhum desafio e nunca voltei atrás! Fuga não é bem a palavra que combina comigo! Mas o que tem a dizer sobre isso, uma criatura que não tem vida e se saboreia com a carniça?

E a Morte continuava imparcial, o rosto inalterado como se nada houvesse sido dito.

-Você fez o que fez sempre fugindo.

Aquelas palavras faziam cada vez menos sentido. Tudo que ela queria era conseguir irritar a Morte, conseguir alguma emoção naquele rosto impenetrável. Ela sentia-se desprotegida e fraca. Já não encontrava uma maneira de se enraivecer... Só queria correr e correr. Até que ela se abrigou em uma idéia. Ela teve compaixão pela Morte. Imaginou a sua, hum, “vida”, imaginou como seria difícil “viver” arrancado a alma dos outros. E quanto isso deveria ser triste. E que anos disso deveriam ter transformado aquele ser no que hoje ele é. E essa compaixão fez diminuir o pavor dentro dela.

-De todos os humanos que por minhas mãos já passaram, e eu ando no meio de sua espécie, dilacerando almas, desde a primeira respiração do primeiro homo sapiens que na Terra surgiu, você é a mais covarde que eu já presenciei.

Toda compaixão se tombou e todo pavor voltou. Julia tentou de novo criar forças para se desprender. E nada. Se ao menos conseguisse fechar os olhos e extinguir-se, mas não conseguia controlar a si mesma.

-Eu não consigo entender o que você diz! Eu não quero entender! Só me tira daqui, por favor! Dê um fim nisso!

-Isso só você mesma é capaz de fazer.

O desespero já lhe cortava por dentro e ela podia até sentir a lâmina do medo. A ignorância sobre tudo que a Morte dissera, a sua voz e o nada já era insuportáveis. Ela sentia-se esmagando. Esperou com veemência que aquilo continuasse a oprimindo com força e acabasse de vez.

-Vocês humanos inventam crenças, demônios e deuses, céus e infernos. Vocês criam falsos medos para ter algo no que se segurar. Mas vocês têm mesmo medo é do vazio. Desse nada que agora a aterroriza. Vocês inventam até uma via após a morte pra não pensarem na possibilidade de simplesmente irem para o vazio. E sabe por que vocês têm tanto medo disso?

Julia queria amolecer, desmaiar e cair. O som esquisito daquela voz e as suas verdades eram cortantes. Fez que não com a cabeça, ou pelo menos tentou fazer.

-Porque no vazio vocês ficam à mercê de si mesmos.

A mesma sensação de quando alguém diz uma verdade que você tenta esconder de si mesmo para não ter que acreditar e pensar sobre percorreu pelas entranhas de Julia.

-Agora mesmo você tentou ser compaixão de mim. Você tentou se ignorar e pensar em mim. Você teve medo de pensar na sua própria vida, nos seus próprios pensamentos e próprias sensações. Você quis tombar e não conseguiu, porque não sentiu o seu corpo. Você se prendeu a ele a vida inteira e não conseguiu aprender a se movimentar dentro de si mesma. Agora, o seu corpo de nada vale. A única coisa que governa é o seu interior e você foi incapaz domá-lo. Isso porque agora não são mãos, que basta guiá-las em uma direção. Não são neurônios mandando impulsos nervosos para seu cérebro racional. Agora é apenas você, e você é formada de sentimentos perturbados, questionando-se, pondo-se em contradição, mudando conceitos e matando uns aos outros. Sempre foi assim, mas você se ignorou e priorizou o resto e não conseguiu caminhar dentro de si. E agora, ter de fazer isso a apavora. E tenho uma notícia: tudo que sempre disseram sobre deus e o diabo são farsas e mais farsas. Deus não é o todo poderoso e o diabo não vai te fazer arder. Mas existe sim uma força maior, uma força que dá sentido a tudo que você fez e tudo que deixou de fazer. Mas essa força está dentro de você mesma. É um ponto de luz, de equilíbrio, perdido numa extensão vasta e abundante do seu ser. E você só irá encontrar esse equilíbrio quando conseguir peregrinar por cada milímetro de si e dominar-se. E tudo isso que você vê, ou não vê, em volta “de si”, todo esse abismo sem fim, é tudo você. Eu a enxergo espalhada em cada canto. E você é mais extensa do que pensa, tem mais dúvidas e oposições do que imagina. Mais sensações do que desconfia ter. Agora, meu trabalho acaba por aqui. Agora você estará completamente só consigo mesma e deverá começar a trilhar sua viagem pelo seu interior até encontrar o equilíbrio. Boas descobertas.

Então a Morte desapareceu, perdeu-se no nada, extinguiu-se. Ah, como queria poderia fazer isso. E logo percebeu que esse era um mau começo. Não era dessa forma que se conheceria. Agora ela entendia toda a verdade e o mundo passava a fazer um novo sentido. Ela viu castelos desmoronarem ao olhar a sua vida, dessa vez olhando de um novo ângulo. Decidiu reviver cada instante nesse seu novo ponto de vista sobre as coisas e encarar tudo que sempre havia fugido. Teria um longo trabalho pela frente, mas podia sentir que alguma coisa em sua vida sempre esteve certa. A existência de algo que valha à pena ser bom. Só não imaginava que isso estaria tão perto e tão ao seu alcance, dentro de si mesma. Mas é claro que mesmo que tivesse chegado a essa conclusão, não poderia senti-la, pois até essa verdade seria uma crença, estando assim aprisionada e não sendo capaz de penetrar-se. Mas isso é uma questão para Julia mesma refletir. E isso ela fez.

2 comentários:

Ivan Ryuji disse...

Achei bonito.
De uma maneira estranha, é verdade, mas achei.. =)

Valeu pelas visitas!

Bjos

Ivan Ryuji
http://blogdoryuji.blogspot.com/

Angel disse...

Gostei demais desse texto, porque eu me identifiquei, claro que não precisei me encontrar com a morte, mas hoje, na minha cabeça, não há tb esse Deus e o Demônio, há Eu, o meu Eu, e nada mais além disso existe pra tentar fazer eu ser algo. Minhas ações e atitudes são fruto do que eu sou e no que eu acredito, e eu não me arrependo, de somente creer em mim mesma.