segunda-feira, 18 de julho de 2011

Nem Céu, nem Inferno

Eu não tenho alma. Sou oco como uma árvore podre. Passo os dias vagando, como uma sombra que se desprendeu do seu corpo, sem uma explicação lógica pra existir. Eu sou muito pior que isso. Porque eu vivo da vida e da morte. Eu nasci matando e consciente. Eu sou a escória.


Eu vim de um grito. Mas não um grito de dor física ou de felicidade. Mas de arrependimento. Uma vontade tão grande de voltar no tempo, que eu penso que poderia ter me extinguido. Mas eu não tenho essa sorte. Um arrependimento cheio de nojo, de repulsa, de vômito. E eu senti tudo isso quando nasci. É a única lembrança que eu tenho dela, a Senhora minha mãe. Tudo aquilo que ela sentiu, eu senti junto. E depois foi só clarão.

Então meus dias passaram assim, me alimentando dos sentimentos alheios, guardando sensações e repelindo outras. E eu aprendi a discernir umas das outras. Algumas têm nome e outras são inexplicáveis, como a sensação de pisar na areia. Algumas são parecidas nos tipos mais comuns de pessoas, como o ciúme, que é previsível e repulsivo. E em outras aparecem de uma forma curiosa, às vezes até quase sagrada. E algumas sensações são tão devastadoras que eu tive medo.

Mas eu preferi repelir todas as sensações prazerosas, que fazem sorrir, porque eu não tenho certeza se posso o fazer. Se, de alguma forma, eu sou capaz de produzir algum tipo de sentimento, o único que paira em mim é o que as pessoas chamam de culpa. Se em alguns segundos eu senti todo o nojo e arrependimento que a Senhora minha mãe sentiu, eu também pude sentir toda sua devoção e adoração ao que ela chamava de Deus. Eu roubei todo o seu sopro quando nasci. Uma vida por uma vida, não? Então, a lógica está errada, porque eu não tenho uma vida. Ou será que no mesmo instante nasceu em um lugar qualquer do mundo alguém tão puro e cândido que valesse a sua alma? E então eu me pergunto que pessoa tão crua e vazia pode ter ido pra que eu nascesse? Mas eu não sei se a logística de nascimentos e mortes do Céu está certa. E é provável que não seja exatamente do Céu que eu tenha vindo. E tampouco do Inferno. Talvez eu tenha estado sempre aqui, vagando pelo nada, esperando por um nicho e uma oportunidade de experimentar. Como uma obra inacabada que espera uma exposição falida dar-lhe um canto para se expor. Uma obra inacabada e mal feita, que se esqueceram de colocar o miolo, e não é capaz de fazer nem o mal e nem o bem.

E este sou eu. Tão incompleto. Mas eu tenho uma maldição, ou o que muitos chamam de dom. Eu posso ver o clarão do dia derradeiro. E a morte diz sobre a vida de uma pessoa muito mais do que se pode imaginar. Ela diz o caminho, o tempo e o lugar. Ver a morte de uma pessoa é como ler o último parágrafo de um livro. Mas a morte não é algo que eu possa mudar, mas apenas conviver. Apenas ver vários clarões, ver vidas que valeram à pena se esvaírem, cair no incerto, enquanto eu permaneço perambulando.

E eu estava assim, perambulando, no dia que um lampejo, uma faísca de algo surgiu dentro de mim. Eu estava num prédio, entregando as correspondências do dia. E no fim do corredor havia uma sala minúscula e um apinhado de gente amontoada. Eu pude sentir nervosismo, pressa, agonia, medo, tristeza, raiva, ódio. E uma coisa devastadora que eu repeli com força.





E no meio daquelas pessoas havia uma menina pálida. Um pequeno corpinho delicado envolto em um cobertor cor de rosa. O cheiro de uma vida recém nascida. Mas o sopro da sua vida estava fraco, um fiozinho fino sendo puxado. Era quase imperceptível. Mas mesmo assim havia ali dentro uma força enorme, uma vontade enorme de continuar.

Seus olhos encontraram os meus, e era quase que suplicante, como se ela também estivesse sentindo que tudo acabaria. E o clarão estava perto demais. E não havia nada que eu pudesse fazer. Mas agora eu não era indiferente. Eu realmente queria fazer algo. Eu sentia por aquela vida. Eu queria valer alguma coisa, e poderia ser uma vida por outra. Mas eu nem tinha uma. Mas eu sentia. Eu me sentia o Diabo por ver um anjo em candura desfazer-se em agonia. Eu sentia, e era o meu sentimento. E eu nunca havia sentido assim antes. E então eu já não podia controlar mais nada, eu só queria colocar luz naqueles olhos suplicantes.

E não pude mais repelir aquela onda devastadora. E aquilo tomou conta de mim. E eu não consigo explicar em palavras o turbilhão de sentidos, de sensações, de coisas desconexas que passaram pela minha cabeça. Tinha cheiro, tinha cor, tinha textura. E ao mesmo tempo era abstrato. E aquela menina não chorava, como se não houvesse mais força. Ela estava imóvel, e dentro dela uma vontade imensa de voltar à superfície. Mas não havia mais força. E o clarão estava cada vez mais perto. E tudo que eu queria era valer alguma coisa. Eu sentia. Sentia a necessidade de salvar aquela vida.

Mas então, veio o clarão. E depois uma dor imensurável, que poderia ter me extinguido. Mas eu não tenho essa sorte.

Nenhum comentário: